Sono e Saúde Cardiovascular: A Nova Fronteira da Cardiologia Preventiva?

Dormir bem é muito mais do que um luxo — é uma necessidade fisiológica com implicações diretas na saúde do coração. O artigo “A Good Night’s Rest”, publicado no American Journal of Preventive Cardiology, apresenta uma análise abrangente e atualizada sobre como diferentes aspectos do sono — duração, regularidade e qualidade — influenciam o risco de doenças cardiovasculares (DCV), síndrome metabólica e mortalidade. À luz das novas diretrizes da American Heart Association (AHA), que incluíram o sono nos “Life’s Essential 8”, este estudo propõe uma reavaliação do papel do sono como fator de risco modificável tão relevante quanto alimentação ou atividade física.

Duração do Sono: O U Entre o Risco e a Proteção

A maioria dos estudos epidemiológicos identifica uma relação em forma de “U” entre a duração do sono e o risco cardiovascular: tanto dormir menos de 7 horas quanto mais de 9 horas por noite se associa a maior mortalidade e incidência de doenças como infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC) e doença arterial coronariana (DAC). Dados de coortes como a MESA e UK Biobank reforçam esse padrão, com impacto particularmente acentuado entre pacientes com doenças crônicas.

Regularidade: O Relógio Biológico como Guardião da Saúde Vascular

Mais recentemente, a regularidade do sono — ou seja, manter horários consistentes para dormir e acordar — mostrou ser um preditor ainda mais forte de mortalidade do que a própria duração. A variabilidade na duração ou início do sono (medida pela actigrafia de punho) está associada a maior risco de síndrome metabólica, obesidade, hipertensão e diabetes. O índice de regularidade do sono (SRI) surge como ferramenta promissora para avaliar disfunções circadianas de forma mais robusta que medidas isoladas.

Qualidade do Sono: O Elo Perdido da Cardiologia?

A qualidade do sono, embora menos estudada, também exerce influência significativa. Fragmentação, despertares noturnos frequentes e baixa eficiência do sono se correlacionam com espessamento da carótida, disfunção endotelial e aumento de inflamação sistêmica. O índice de fragmentação do sono (SFI) e a latência para iniciar o sono são métricas emergentes para quantificar essa dimensão. Pessoas com insônia persistente apresentam risco elevado de eventos cardiovasculares, mesmo com duração adequada de sono.

Sono e Aterosclerose: Evidência em Imagens

Estudos como o PESA e MESA demonstram que alterações nos padrões de sono estão associadas à aterosclerose subclínica, detectada por tomografia e ultrassom de carótidas e femorais. Curiosamente, embora a qualidade do sono esteja associada à presença de placas em territórios periféricos, não se observou correlação significativa com o escore de cálcio coronariano (CAC), sugerindo um possível mecanismo diferencial de deposição aterosclerótica.

Intervenções Baseadas em Evidência: Muito Além do “Durma Bem”

Medidas como higiene do sono, cognitivo-comportamental (CBT-I) e terapias cronobiológicas (como luz programada e melatonina) já demonstraram eficácia em melhorar tanto a qualidade quanto a regularidade do sono. O uso de tecnologias vestíveis e actígrafos ganha força como ferramenta clínica e de pesquisa, permitindo rastreamento longitudinal da saúde do sono em populações inteiras. Contudo, ainda são necessários ensaios clínicos randomizados que avaliem se melhorar o sono reduz eventos cardiovasculares de forma direta.

Implicações para a Cardiologia Preventiva: Hora de Expandir o Estetoscópio para o Travesseiro?

Apesar das evidências robustas, a avaliação sistemática do sono ainda não faz parte do exame clínico cardiológico padrão, com exceção do rastreio de apneia. A incorporação do sono nas diretrizes é um avanço, mas precisa ser expandida para incluir regularidade e qualidade. A utilização de escalas simples como a Epworth Sleepiness Scale pode ser um primeiro passo prático.

Conclusão: Podemos Tratar o Sono Como Tratamos a Pressão Arterial?

A revisão de Amin et al. traça uma narrativa poderosa: o sono saudável é um pilar negligenciado da prevenção cardiovascular moderna. Sua influência vai muito além do repouso — ele molda a função endotelial, regula o metabolismo e protege contra inflamações crônicas. No entanto, a medicina ainda carece de ferramentas clínicas padronizadas, políticas públicas eficazes e investimento em pesquisa para traduzir esse conhecimento em ações de impacto populacional.

A pergunta que permanece é: estamos prontos para integrar o sono ao centro da cardiologia preventiva — ou continuaremos a tratá-lo como um coadjuvante, mesmo quando ele pode ser o protagonista silencioso da saúde cardiovascular?

Referência:

Autor: Dr Marcelo Tavares – Cardiologista e Ecocardiografista

CRM Nº 9932 | RQE Nº 5331 (Ecocardiografia) | RQE Nº 5330 (Cardiologia)
Pós-doutor em cardiologia pelo Incor/USP, Dr. Marcelo é professor de semiologia na UFPB e editor-chefe da Cardiovascular Imaging.
Membro do Advisory Board Médico DrHub