Pesquisadores do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo e do Instituto do Coração (InCor), em colaboração com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, conduziram um estudo randomizado, triplo-cego e controlado por placebo para avaliar o efeito da ivabradina na prevenção da disfunção cardíaca em pacientes com linfoma ou sarcoma submetidos à quimioterapia baseada em antraciclina. As antraciclinas, embora altamente eficazes no tratamento de diversos tipos de câncer, são conhecidas por seus efeitos adversos no sistema cardiovascular, frequentemente causando disfunção cardíaca relacionada à terapia do câncer (CTRCD).
A ivabradina, um agente que reduz a frequência cardíaca sem afetar a contratilidade, demonstrou efeitos anti-inflamatórios, antioxidantes e antiapoptóticos em modelos experimentais de cardiotoxicidade. Com base nesses achados promissores, o estudo IPAC (Ivabradine for the Prevention of Cardiac Dysfunction During Anthracycline-Based Cancer Therapy) buscou investigar se a ivabradina poderia prevenir a cardiotoxicidade induzida por antraciclinas em um ambiente clínico.
O ensaio clínico incluiu 107 pacientes (51 no grupo ivabradina e 56 no grupo placebo) que iniciaram a terapia com antraciclina. Os pacientes receberam 5 mg de ivabradina duas vezes ao dia ou placebo até 30 dias após a conclusão do tratamento. O desfecho primário foi a incidência de cardiotoxicidade, definida como uma redução relativa de ≥10% na deformação longitudinal global (GLS) aos 12 meses em relação à linha de base. Os desfechos secundários incluíram eventos clínicos aos 12 meses, como redução da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) para <55%, disfunção diastólica e níveis de troponina T e peptídeo natriurético tipo B-terminal (NT-proBNP). Apesar das expectativas geradas pelos estudos pré-clínicos, a ivabradina em uma dose fixa de 10 mg/dia não demonstrou um efeito protetor significativo contra a cardiotoxicidade induzida por antraciclinas. A redução na GLS aos 12 meses foi observada em 57% dos pacientes no grupo ivabradina e em 50% no grupo placebo, uma diferença não estatisticamente significativa (P=0.477). Da mesma forma, não houve diferenças significativas em outros desfechos secundários, como a ocorrência de complicações clínicas, redução da FEVE ou disfunção diastólica entre os grupos.
Curiosamente, uma proporção menor de pacientes no grupo ivabradina apresentou níveis de troponina T ≥14 ng/L aos 6 meses (39,0% versus 62,2% no grupo placebo; P=0.041). No entanto, essa diferença não foi mantida no acompanhamento de 12 meses, e suas implicações clínicas devem ser interpretadas com cautela, dada a ausência de efeitos sustentados em outros parâmetros cardíacos. A falta de uma redução significativa da frequência cardíaca no grupo da ivabradina, possivelmente devido à dose fixa e à ausência de titulação, pode ter contribuído para os resultados neutros observados.
Os resultados deste estudo pioneiro, o primeiro ensaio randomizado triplo-cego a investigar a ivabradina para prevenção da cardiotoxicidade por antraciclinas, desafiam as hipóteses baseadas em modelos pré-clínicos. A alta prevalência de disfunção cardíaca subclínica (reduções significativas na GLS sem disfunção sistólica aparente) em ambos os grupos ressalta a natureza prevalente da lesão cardíaca em pacientes tratados com antraciclinas, reforçando a importância do monitoramento da deformação miocárdica.
Este estudo abre novas avenidas para a pesquisa. Quais estratégias alternativas, incluindo controle mais individualizado da frequência cardíaca ou outros agentes cardioprotetores, deveriam ser exploradas? Seria a ivabradina mais eficaz em populações de alto risco ou com taquicardia induzida por antraciclinas, que poderiam se beneficiar mais da modulação da frequência cardíaca? Além disso, o que a redução transitória dos níveis de troponina T sugere sobre o potencial da ivabradina em reduzir a lesão miocárdica, mesmo que sem prevenir a disfunção sistólica, e como isso pode ser explorado em futuros ensaios?
Referência
Autor: Dr Marcelo Tavares – Cardiologista e Ecocardiografista
CRM Nº 9932 | RQE Nº 5331 (Ecocardiografia) | RQE Nº 5330 (Cardiologia)
Pós-doutor em cardiologia pelo Incor/USP, Dr. Marcelo é professor de semiologia na UFPB e editor-chefe da Cardiovascular Imaging.
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