A cardio-oncologia, campo emergente que interliga a oncologia com a cardiologia, avança rapidamente ao incorporar conceitos da medicina de precisão, biologia sistêmica e fatores sociais e ambientais. O artigo publicado por Makram et al. no Cardiology Clinics (2025) vai além dos fatores de risco tradicionais, propondo uma abordagem holística para prever, monitorar e prevenir doenças cardiovasculares (DCV) em pacientes com câncer, incluindo sobreviventes. A proposta: integrar tecnologia, dados em tempo real, ciência ômica e fatores sociais para transformar a prática clínica.
Muito Além da Hipertensão e da Dislipidemia: Um Universo de Riscos Emergentes
Os autores destacam que os fatores tradicionais — como hipertensão, diabetes e tabagismo — são apenas a ponta do iceberg. Fatores como determinantes sociais da saúde (SDOH), poluição, microbioma intestinal, e até mesmo o bairro em que o paciente vive desempenham papel crucial e frequentemente subestimado. Pacientes oncológicos, especialmente os de baixa renda, enfrentam barreiras de acesso ao cuidado cardiovascular, com altas taxas de falência de adesão, complicações e mortalidade.
Além disso, a toxicidade financeira — os custos indiretos do tratamento oncológico — leva muitos pacientes a abandonarem medicamentos cardiovasculares, piorando os desfechos. É uma tempestade perfeita onde biologia, desigualdade e ambiente colidem.
O Futuro É Agora: Tecnologia Vestível, Multiômica e Inteligência Artificial
A revolução tecnológica também chegou à cardio-oncologia. Dispositivos “vestíveis” (como smartwatches) já são capazes de detectar arritmias, flutuações pressóricas e alterações de sono, além de monitorar exposição à poluição e ruído. Quando conectados a sistemas de telemedicina e inteligência artificial, esses dados se transformam em plataformas preditivas, permitindo ajustes terapêuticos em tempo real.
O conceito de multiômica — que integra genômica, proteômica, metabolômica e microbiômica — permite construir um perfil de risco personalizado, detectando precocemente alterações moleculares antes que se tornem clinicamente evidentes. Isso é particularmente relevante para prever cardiotoxicidade induzida por quimioterapia, como nos casos de trastuzumabe e inibidores de tirosina-quinase.
Imagens Avançadas e Radiômica: Diagnóstico com Precisão Molecular
A ressonância magnética cardíaca e o ecocardiograma com strain já fazem parte da rotina. No entanto, a radiômica — que extrai características quantitativas de imagens — traz uma nova dimensão à avaliação subclínica da função cardíaca. Aplicações incluem a predição de eventos cardiovasculares maiores, detecção precoce de amiloidose cardíaca e análise de placas ateroscleróticas não calcificadas.
A Máquina Está Aprendendo: IA e Modelos Preditivos Superam as Ferramentas Tradicionais
Os modelos de machine learning estão superando os tradicionais scores de risco, principalmente em pacientes oncológicos com múltiplas comorbidades. Esses algoritmos analisam milhares de variáveis em tempo real, incluindo registros eletrônicos, notas clínicas e dados de biossensores, gerando insights que um médico sozinho não poderia alcançar.
A aplicação já é real: na Universidade da Geórgia, algoritmos específicos para câncer de mama e próstata estão sendo utilizados para prever insuficiência cardíaca e eventos coronarianos, com maior acurácia que os métodos convencionais.
Conclusão: O Caminho para uma Cardio-Oncologia Realmente Personalizada?
O estudo de Makram e colaboradores é uma chamada urgente à ação: não basta apenas monitorar fração de ejeção e prescrever beta-bloqueadores. É preciso enxergar o paciente oncológico como um sistema complexo e integrado, onde biologia, ambiente, comportamento e tecnologia interagem continuamente. A proposta de uma cardio-oncologia de precisão, alimentada por dados, personalizada e proativa, promete não apenas prolongar a sobrevida, mas também preservar a qualidade de vida desses pacientes.
Mas, diante de tantas possibilidades e tecnologias ainda em validação, fica o questionamento central: estamos preparados — em termos de infraestrutura, formação profissional e equidade — para transformar essa visão em prática clínica real, ou continuaremos presos a modelos que ignoram a complexidade individual dos nossos pacientes?
Referência:
Autor: Dr Marcelo Tavares – Cardiologista e Ecocardiografista
CRM Nº 9932 | RQE Nº 5331 (Ecocardiografia) | RQE Nº 5330 (Cardiologia)
Pós-doutor em cardiologia pelo Incor/USP, Dr. Marcelo é professor de semiologia na UFPB e editor-chefe da Cardiovascular Imaging.
Membro do Advisory Board Médico DrHub