Pesquisadores australianos desenvolveram um algoritmo de aprendizado profundo capaz de prever eventos cardiovasculares maiores em mulheres, utilizando imagens de mamografia de rotina combinadas à idade. O modelo apresentou desempenho promissor, com índice de concordância (C-index) de 0,72, comparável a modelos tradicionais de predição cardiovascular.
Contexto e Relevância
Doença cardiovascular (DCV) é responsável por cerca de 18 milhões de mortes por ano no mundo, além de gerar significativa morbilidade e impacto na qualidade de vida. Há reconhecimento crescente de que fatores de risco cardiovascular em mulheres são frequentemente subdiagnosticados ou subtratados, e que os algoritmos de predição convencionais têm desempenho inferior nessa população.
Na Austrália, programas nacionais de rastreamento oferecem mamografia gratuita para mulheres entre 50 e 74 anos, com adesão de aproximadamente 50 % do público elegível. Esse cenário favorece a exploração de uma abordagem “dois em um”, em que a mamografia de rotina poderia também servir como instrumento de triagem cardiovascular.
Embora a calcificação arterial mamária já tenha sido associada ao risco cardiovascular e fatores de risco como diabetes, hipertensão e dislipidemia, seu uso isolado tem limitações, e não é fortemente correlacionada com obesidade ou tabagismo. Além disso, outras características mamográficas, como densidade e microcalcificações, também mostraram relação com desfechos cardiometabólicos — mas ainda não foram integradas em modelos automatizados de predição.
Metodologia do Estudo
O estudo utilizou a coorte Lifepool, composta por 49.196 mulheres australianas sem doença cardiovascular prévia, recrutadas entre 2009 e 2020 em centros de rastreamento mamográfico no Estado de Victoria. O seguimento médio foi de 8,8 anos (intervalo interquartil 7,7–10,6 anos). Durante esse período foram registrados 3.392 eventos cardiovasculares maiores (CVMAs) — taxa de 7,6 por 1.000 pessoas-ano.
O modelo de aprendizado profundo se baseou na arquitetura DeepSurv para predizer eventos cardiovasculares estendidos (infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, doença aterosclerótica, insuficiência cardíaca, e morte cardiovascular) a partir de imagens mamográficas bilaterais, combinando radiômica extraída por rede neural com 196 características radiômicas convencionais e idade basal das participantes. Foi empregada validação cruzada aninhada para avaliar desempenho. Foram comparados três modelos: apenas mamográfico (imagens + idade), apenas clínico (fatores tradicionais sem imagens) e modelo combinado (clínico + mamográfico). Os critérios de avaliação incluíram o índice de concordância dependente do tempo (C-index), escore de Brier integrado e log-verossimilhança binomial integrada.
Os desfechos foram obtidos por registros hospitalares do Victorian Admitted Episodes Database (com codificação internacional de doenças, ICD-10 modificado para uso australiano) e pelo National Death Index, no que se refere a mortes cardiovasculares.
Principais Achados
O modelo baseado unicamente em mamografia apresentou C-index de 0,72 (IC 95 % 0,71–0,73), escore de Brier integrado de 0,06 (IC 95 % 0,058–0,063), e log-verossimilhança binomial integrada de –0,21 (IC 95 % –0,22 a –0,20). Esse desempenho se mostrou estatisticamente comparável aos modelos tradicionais de risco cardiovascular.
O modelo clínico (fatores tradicionais) apresentou C-index de 0,73 (IC 95 % 0,72–0,74). A combinação entre informações clínicas e mamográficas atingiu o melhor desempenho global, com C-index de 0,75 (IC 95 % 0,74–0,76).
Em termos de subgrupos, o modelo mamográfico manteve robustez: entre mulheres com índice de massa corporal < 25 kg/m², o C-index foi de 0,72 (IC 95 % 0,70–0,75); para IMC ≥ 25 kg/m², C-index de 0,71 (IC 95 % 0,70–0,73). Em mulheres pré-menopáusicas, o índice foi de 0,75 (IC 95 % 0,71–0,79) e, em pós-menopáusicas, 0,71 (IC 95 % 0,69–0,73).
Durante o período de acompanhamento, os eventos cardiovasculares foram distribuídos da seguinte forma: 2.383 casos de doença aterosclerótica, 731 de insuficiência cardíaca, 656 infartos e 434 acidentes vasculares cerebrais.
Potencial de Aplicação Clínica
Os autores sugerem que a análise automatizada de mamografias poderia servir como uma ferramenta de triagem cardiovascular adicional em mulheres, aproveitando o momento em que já se realiza rastreamento mamográfico de rotina — ou seja, poderia oferecer uma estratégia “dois em um” para detectar risco cardiovascular subjacente.
Entretanto, a aplicação clínica exige cautela. Há limitações metodológicas e operacionais que precisam ser superadas antes da adoção em escala.
Limitações do Estudo
Entre as limitações apontadas:
- A normalização das imagens para lidar com diferentes equipamentos mamográficos pode não garantir transferência robusta do modelo entre diferentes aparelhos, com risco de perda de pequenas calcificações sutis ou detalhes relevantes.
- Os fatores de risco usados nos modelos comparadores foram autorrelatados, o que pode reduzir a precisão da comparação com ferramentas externas bem estabelecidas de risco cardiovascular.
- A generalização do modelo para populações com diferentes perfis étnicos, protocolos de exame e equipamentos radiológicos requer recalibração externa e validação em outros centros.
- O estudo não avaliou custos ou viabilidade econômica da aplicação do modelo em ambiente real, o que é essencial antes da incorporação clínica ampla.
Conclusão
Um algoritmo de aprendizado profundo aplicado a imagens de mamografia de rotina, combinado à idade da paciente, demonstrou potencial para predizer risco cardiovascular em mulheres com desempenho comparável aos modelos clínicos tradicionais. A estratégia “dois em um” — rastreamento para câncer de mama e, simultaneamente, para risco cardiovascular — pode abrir caminho para uma abordagem integrada de saúde feminina. Contudo, é necessária validação externa, adaptação tecnológica e avaliação de custo-efetividade antes de considerar sua implementação em prática clínica geral.
Referência
Barraclough JY, Gandomkar Z, Brennan P, et al. Mamografias revelam mais do que câncer: algoritmo prevê risco cardíaco com precisão. Heart. Publicado online. Medscape versão portuguesa; 24 set 2025.