Durante décadas, a ideia de que o consumo moderado de álcool poderia ser benéfico à saúde cardiovascular foi amplamente difundida. Em 1993, um editorial do New England Journal of Medicine chegou a afirmar que existiam “poucas dúvidas” sobre esse benefício. No entanto, uma nova declaração científica da American Heart Association (AHA), publicada em 2024, convida à reavaliação dessa crença à luz de evidências mais recentes.
Com base em novos estudos e metodologias mais rigorosas — como metanálises individuais e randomização mendeliana —, a AHA propõe uma abordagem mais cautelosa sobre o uso moderado de álcool e seus efeitos sobre a saúde cardiovascular.
O Que Diz a Nova Declaração da AHA
Segundo o documento, ainda não há evidência suficiente para afirmar que o consumo de álcool, mesmo em níveis moderados, faça parte de um estilo de vida saudável. A AHA recomenda aos médicos que continuem priorizando condutas comprovadamente benéficas, como exercícios físicos regulares, controle do peso corporal e a abstenção do tabaco.
Metodologias modernas desafiam crenças antigas:
A proteção cardiovascular associada ao consumo moderado foi, historicamente, derivada de estudos observacionais. Contudo, esses estudos enfrentam limitações metodológicas, como a definição inconsistente de “consumo moderado” (em geral, até duas doses diárias para homens e uma para mulheres). Análises recentes com métodos mais robustos, como a randomização mendeliana, demonstram que a associação entre consumo moderado e proteção cardiovascular é fraca, ou até inexistente.
Consumo de Álcool e Diferentes Condições Cardiovasculares
Doença Arterial Coronariana (DAC):
A AHA reconhece que pode haver uma leve redução de risco com o consumo moderado, mas reforça que essa relação é menos clara em estudos com maior rigor científico. A associação benéfica é, portanto, questionável.
Insuficiência Cardíaca:
O consumo leve a moderado não apresentou evidências de benefício ou prejuízo direto. Entretanto, o consumo mais frequente (cinco ou mais doses por semana) pode levar à disfunção ventricular esquerda, o que contribui para quadros de insuficiência cardíaca.
Hipertensão:
Aqui, a evidência é mais clara. Mesmo níveis moderados de álcool podem aumentar a pressão arterial em indivíduos hipertensos. Por isso, a abstenção é recomendada como estratégia para controle da hipertensão.
Acidente Vascular Cerebral (AVC):
Os dados são conflitantes. Alguns estudos relacionam o consumo moderado ao aumento do risco de AVC, possivelmente devido ao impacto do álcool sobre a pressão arterial, especialmente em pessoas já hipertensas.
Arritmias e Cardiomiopatias:
A abstenção ou consumo muito baixo parece ser mais favorável. Um estudo indicou redução da carga de fibrilação atrial com a abstinência alcoólica, ainda que a maioria dos dados disponíveis não venha de estudos randomizados.
Consenso Global e Outras Declarações
A declaração da AHA está alinhada com outras organizações de saúde internacionais que alertam sobre os riscos do álcool:
- OMS (2023): “Nenhum nível de consumo de bebidas alcoólicas é seguro para a nossa saúde”.
- CDC (2025): Recomendou a inclusão de alertas nos rótulos de bebidas alcoólicas devido à associação com o câncer.
- Relatório canadense (2023): Incentiva a redução do consumo como parte de uma vida saudável.
Nos EUA, mais de 50% da população adulta relatou ter consumido álcool no mês anterior, segundo pesquisa de 2023. Ainda assim, o governo não afirma explicitamente que baixos níveis de consumo sejam seguros nas Diretrizes Dietéticas.
Conclusão: Recomendações e Caminhos Futuros
A AHA conclui que as evidências disponíveis atualmente não sustentam a recomendação do consumo moderado de álcool como estratégia preventiva para doenças cardiovasculares. Os maiores danos continuam sendo atribuídos ao consumo excessivo, mas o suposto benefício do consumo leve é, no mínimo, incerto.
Segundo o Dr. Jamal S. Rana, que contribuiu para diversos estudos sobre o tema, a mensagem pública precisa ser reformulada. A recomendação não deve mais incluir o consumo de álcool como prática benéfica à saúde cardíaca. Entretanto, ele ressalta que o consumo social e esporádico de pequenas quantidades de álcool pode ser aceitável — desde que os pacientes estejam cientes dos riscos.
Lacunas científicas permanecem:
A AHA enfatiza a necessidade de novos estudos prospectivos rigorosos para confirmar — ou refutar — os potenciais benefícios do uso moderado de álcool. Até lá, a prudência deve guiar tanto médicos quanto pacientes nas decisões sobre o consumo.
Referência
Bosworth T. Nova declaração da AHA reconsidera o uso moderado de álcool em relação à saúde cardiovascular [Internet]. Medscape Notícias Médicas; 2025 jul 2 [citado 2025 jul 7]. Disponível em: https://portugues.medscape.com/verartigo/6512953#vp_3