Apesar dos avanços na oncologia, as antraciclinas — potentes quimioterápicos como doxorrubicina, daunorrubicina e epirrubicina — permanecem essenciais no tratamento de diversos cânceres, incluindo leucemias, linfomas e câncer de mama. Contudo, seu uso está associado a um efeito colateral potencialmente devastador: a cardiotoxicidade induzida por antraciclinas, que pode culminar em disfunção ventricular esquerda, insuficiência cardíaca e, em casos graves, morte súbita. O artigo publicado no Cardiology Clinics (2025), liderado por Elizabeth Balough e colaboradores, aprofunda-se nesse tema crucial, revelando avanços e lacunas que ainda precisam ser enfrentadas.
Manifestação Clínica e Mecanismos Patogênicos
A cardiotoxicidade se manifesta, classicamente, como disfunção sistólica ventricular esquerda, frequentemente detectada por queda na fração de ejeção (FEVE). No entanto, estudos modernos mostram que as alterações podem ocorrer antes mesmo da disfunção clínica, com elevações precoces de troponina e alterações no strain global longitudinal (SGL). Essa lesão cardíaca subclínica representa um contínuo patológico que pode culminar em insuficiência cardíaca, se não identificada e tratada precocemente.
Mecanisticamente, as antraciclinas causam dano miocárdico por múltiplas vias: estresse oxidativo, sobrecarga de ferro intracelular, disfunção mitocondrial e apoptose, além da inibição da topoisomerase 2B (Top2B), fundamental para a integridade mitocondrial. Essa complexidade bioquímica abre caminho para estratégias terapêuticas direcionadas — ainda em desenvolvimento — que preservem o efeito antitumoral sem comprometer o coração.
Prevenção: Muito Além do Dexrazoxano
A prevenção é o pilar do manejo. Estratégias incluem:
- Redução da dose cumulativa de antraciclina (limite seguro: 250-400 mg/m²).
- Uso de formulações lipossomais da doxorrubicina, com menor penetração cardíaca.
- Dexrazoxano, quelante de ferro e inibidor da Top2B, já aprovado pelo FDA, mas ainda subutilizado por temores infundados quanto à eficácia oncológica.
No campo da farmacoproteção, estudos com betabloqueadores, IECA, ARBs e estatinas têm mostrado resultados mistos. Há esperanças promissoras com os inibidores de SGLT2, cuja eficácia cardiovascular já está estabelecida em outras populações — embora faltem ainda ensaios clínicos robustos em pacientes oncológicos.
Diagnóstico e Monitoramento: A Revolução dos Biomarcadores e da Imagem
A monitorização da função cardíaca antes, durante e após o tratamento é essencial. As ferramentas disponíveis incluem:
- Ecocardiograma com strain (SGL): mais sensível que a FEVE.
- Biomarcadores séricos como troponina e NT-proBNP, úteis para detectar lesão miocárdica precoce, embora ainda careçam de padronização para a população oncológica.
- Novos métodos em avaliação: análise de trabalho miocárdico, strain atrial e biomarcadores moleculares multiómicos.
Entretanto, como demonstrado no estudo SUCCOUR, a detecção precoce por GLS ainda não mostrou, de forma definitiva, redução nos desfechos clínicos — o que reforça a necessidade de ensaios prospectivos que correlacionem diagnóstico precoce com impacto real na sobrevida e qualidade de vida.
Atenção aos Sobreviventes: Risco Tardio e Vigilância Prolongada
Mesmo anos após o término da quimioterapia, os sobreviventes de câncer — especialmente os tratados na infância — continuam em risco de desenvolver miocardiopatia. Estratégias de longo prazo incluem:
- Avaliação ecocardiográfica regular com base no risco cumulativo.
- Educação do paciente e controle rigoroso dos fatores de risco cardiovascular.
As diretrizes da ESC e de sociedades oncológicas recomendam monitoramento personalizado, mas há lacunas quanto à frequência ideal e às ferramentas mais eficazes para vigilância de longo prazo.
Conclusão: O Coração Está Preparado para Acompanhar a Vitória Contra o Câncer?
O avanço no conhecimento da cardiotoxicidade das antraciclinas é inegável. A integração entre oncologia e cardiologia, uso racional de medicamentos cardioprotetores, tecnologias de imagem e biomarcadores representam a vanguarda do cuidado cardio-oncológico. No entanto, o desafio persiste: como equilibrar eficácia oncológica com proteção cardiovascular em um cenário de evidências ainda fragmentadas e práticas clínicas heterogêneas?
Será que estamos prontos para adotar uma cardio-oncologia verdadeiramente personalizada e preventiva — ou ainda subestimamos a ameaça silenciosa que se esconde atrás de cada ciclo de quimioterapia?
Referência
Autor: Dr Marcelo Tavares – Cardiologista e Ecocardiografista
CRM Nº 9932 | RQE Nº 5331 (Ecocardiografia) | RQE Nº 5330 (Cardiologia)
Pós-doutor em cardiologia pelo Incor/USP, Dr. Marcelo é professor de semiologia na UFPB e editor-chefe da Cardiovascular Imaging.
Membro do Advisory Board Médico DrHub