Cálcio Coronário e Mortalidade em Pessoas com HIV: Uma Nova Fronteira na Avaliação do Risco Cardiovascular?

O avanço da terapia antirretroviral combinada (cART) prolongou a sobrevida de milhões de pessoas vivendo com HIV (PWH), transformando o HIV de uma condição aguda fatal em uma doença crônica manejável. No entanto, o preço dessa longevidade parece ser o aumento da carga de doenças não transmissíveis, especialmente a doença cardiovascular (DCV). Um estudo de grande fôlego publicado na revista Atherosclerosis (2025), a partir dos dados da Multicenter AIDS Cohort Study (MACS), trouxe um novo olhar para a avaliação do risco cardiovascular em PWH: o papel do cálcio coronariano (CAC) como preditor de mortalidade por todas as causas.

Desenho do Estudo: Longitudinal, Multicêntrico e Rigoroso

A análise incluiu 1.344 homens (821 com HIV e 523 sem), com idade média de 50 anos, que foram submetidos à tomografia cardíaca sem contraste para mensuração do escore de cálcio coronariano (Agatston). O seguimento foi longo — mediana de 13,4 anos — e o desfecho primário foi a mortalidade por todas as causas. O escore de cálcio foi avaliado como presença (CAC >0), extensão (log(CAC+1)) e categorias (CAC = 0, 0–100, >100). Modelos estatísticos ajustaram os resultados para fatores clássicos e específicos do HIV, como contagem de CD4, carga viral e história de AIDS clínica.

Principais Achados: CAC como Marcador Independente de Risco em PWH

✅ A presença de CAC foi associada a maior mortalidade na coorte total (aHR: 1,46; IC95%: 1,02–2,10; p=0,04) e de forma mais pronunciada nos homens com HIV (MWH) (aHR: 1,62; IC95%: 1,05–2,49; p=0,03).
✅ A extensão do CAC (log(CAC+1)) também se associou a maior mortalidade em MWH (aHR: 1,41; IC95%: 1,14–1,74).
✅ Em contraste, entre homens sem HIV (MWOH), essas associações não foram estatisticamente significativas.
✅ Participantes com CAC >100 apresentaram risco de morte mais que duas vezes maior que aqueles com CAC = 0, independentemente do status sorológico para HIV.

Importante destacar que, após ajuste adicional para variáveis relacionadas ao HIV (modelo 3), a associação entre presença de CAC e mortalidade deixou de ser estatisticamente significativa (aHR: 1,25; p=0,35), mas a extensão do CAC permaneceu associada à mortalidade (aHR: 1,26; p=0,04). Isso sugere um possível papel de mediadores imunológicos ou inflamatórios ainda não completamente mensurados.

Implicações Clínicas: O Cálcio Como Janela Para a “Idade Vascular”?

Os dados reforçam que o CAC pode capturar o envelhecimento vascular acelerado em pessoas vivendo com HIV, possivelmente impulsionado por inflamação crônica residual e disfunção imune — mesmo em pacientes virologicamente suprimidos. Além disso, em um cenário onde não existem escores de risco validados especificamente para PWH, a tomografia de coronárias com escore de cálcio surge como uma ferramenta objetiva e padronizada de estratificação de risco.

As implicações são vastas: pacientes com CAC elevado podem se beneficiar de intervenções farmacológicas mais intensivas, como uso precoce de estatinas — abordagem já validada pelo ensaio REPRIEVE — e medidas de estilo de vida mais agressivas. Embora o estudo não tenha incluído dados sobre placas não calcificadas ou estenoses, ele destaca que mesmo a presença de CAC isoladamente é suficiente para prever maior mortalidade nesse grupo.

Conclusão: Está na Hora de Incorporar o CAC na Rotina da Cardio-Oncologia Viral?

O estudo do MACS apresenta evidências convincentes de que o CAC não é apenas um marcador anatômico, mas um verdadeiro oráculo prognóstico para pacientes vivendo com HIV. Diante de uma população que envelhece e acumula comorbidades, a cardiologia preventiva precisa se adaptar a esse novo perfil. Mas a grande questão permanece: estamos preparados para integrar sistematicamente o escore de cálcio na avaliação de risco cardiovascular em PWH — ou ainda estamos negligenciando um marcador que pode antecipar vidas salvas?

Referência

Autor: Dr Marcelo Tavares – Cardiologista e Ecocardiografista

CRM Nº 9932 | RQE Nº 5331 (Ecocardiografia) | RQE Nº 5330 (Cardiologia)

Pós-doutor em cardiologia pelo Incor/USP, Dr. Marcelo é professor de semiologia na UFPB e editor-chefe da Cardiovascular Imaging.

Membro do Advisory Board Médico DrHub