Conectividade Cerebral Pode Proteger Crianças Expostas a Adversidades da Infância Contra Transtornos Mentais

Estudo com mais de 6.800 pré-adolescentes sugere que padrões funcionais do cérebro atuam como marcadores de resiliência, especialmente em meninas expostas a experiências de ameaça

As adversidades na infância — como abuso, violência doméstica e negligência — são reconhecidas como importantes fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos ao longo da vida. Contudo, nem todas as crianças expostas a essas experiências adoecem. Um estudo de coorte publicado em setembro de 2025 no JAMA Network Open revela que a força da conectividade funcional do cérebro pode modificar esse risco, atuando como marcador de resiliência neurobiológica.

Metodologia

Os pesquisadores utilizaram dados do Adolescent Brain Cognitive Development (ABCD) Study, envolvendo 6.813 crianças de 9 a 11 anos recrutadas em 21 centros nos EUA, acompanhadas por dois anos.

  • Exposição avaliada: experiências adversas na infância (ACEs), relatadas por pais e crianças.
  • Desfechos: número cumulativo de diagnósticos psiquiátricos segundo o KSADS-5 (DSM-5).
  • Neuroimagem: conectividade funcional em repouso (rsfMRI), usada para calcular um escore de connectome variate (CV), derivado por aprendizado de máquina.

Principais resultados

  • Crianças com maior número de ACEs apresentaram risco significativamente maior de múltiplos transtornos psiquiátricos tanto no baseline quanto no seguimento de 2 anos (β = 0,14; p < 0,001).
  • O escore de conectividade cerebral (CV) atenuou a associação entre ACEs e psicopatologia (β = –0,02; p < 0,001).
  • Esse efeito protetor foi específico para ACEs relacionados a ameaça (β = –0,04; p < 0,001), como abuso físico ou exposição à violência.
  • O impacto foi mais pronunciado em meninas (β = –0,06; p < 0,001), sugerindo diferenças de gênero nos mecanismos de resiliência.
  • Não houve efeito significativo do CV para ACEs relacionados à privação (ex.: negligência).

Implicações clínicas e científicas

Segundo os autores, liderados por Xiang Xiao, PhD (NIH), os achados indicam que a conectividade cerebral pode servir como biomarcador de resiliência, ajudando a explicar por que algumas crianças resistem melhor ao impacto de adversidades graves.

“A força de conectividade em redes de controle cognitivo pode proteger pré-adolescentes, especialmente meninas expostas a experiências de ameaça, contra o desenvolvimento de múltiplos transtornos psiquiátricos”, destacam os pesquisadores.

Os resultados reforçam a importância de diferenciar tipos de adversidades (ameaça vs. privação) em estudos sobre risco psiquiátrico, além de apontarem para o potencial de intervenções precoces baseadas em treinamento de funções cognitivas e emocionais.

Conclusão

O estudo mostra que a conectividade funcional do cérebro atua como fator moderador da relação entre adversidades infantis e psicopatologia, fornecendo evidência inicial de um marcador neural de resiliência. Essa descoberta pode orientar estratégias de identificação precoce e prevenção em populações vulneráveis, com especial atenção às meninas expostas a experiências de ameaça.

Referência

Xiao X, Hammond CJ, Salmeron BJ, Scheinost D, Ernst M, Satterthwaite TD, et al. Modification of brain connectome on association between adverse childhood experiences and development of mental disorders in preadolescence. JAMA Netw Open. 2025;8(9):e2533136. doi:10.1001/jamanetworkopen.2025.33136.