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Recentemente, o ensaio clínico HEMOTION, publicado no New England Journal of Medicine em 2024, vem provocar reflexões importantes na prática clínica ao confrontar duas abordagens distintas de transfusão de hemácias em pacientes com traumatismo cranioencefálico (TCE) e anemia. O estudo comparou uma estratégia liberal, que inicia a transfusão quando os níveis de hemoglobina caem para 10 g/dL ou menos, a uma estratégia restritiva, com um limiar de 7 g/dL. Essa investigação, de âmbito internacional e com rigor metodológico, buscou responder a uma questão que, embora já discutida há anos, permanece desafiadora na prática médica: como equilibrar a necessidade de manter a oxigenação cerebral em um cenário de TCE com os riscos inerentes à transfusão sanguínea?
A relevância dessa pesquisa se dá, em parte, pelo fato de que pacientes com TCE estão sujeitos a complicações secundárias decorrentes da anemia, que podem agravar a lesão cerebral ao comprometer a entrega de oxigênio às áreas afetadas. Tradicionalmente, a prática clínica tem oscilado entre a cautela quanto ao uso excessivo de transfusões – para evitar reações adversas e complicações tromboembólicas – e a preocupação com a manutenção adequada dos níveis de hemoglobina, imprescindíveis para a oxigenação cerebral. Nesse contexto, o HEMOTION propõe uma análise aprofundada ao randomizar 742 pacientes críticos, garantindo uma amostra representativa e diversificada, com o intuito de avaliar o impacto de cada estratégia na evolução neurológica a longo prazo.
Os resultados principais do estudo indicaram que, aos seis meses, não houve diferença estatisticamente significativa entre as estratégias quanto à ocorrência de desfechos neurológicos desfavoráveis, medidos pela escala estendida de Glasgow. Em termos absolutos, as diferenças entre os grupos foram modestas, com uma redução de aproximadamente 5,4 pontos percentuais – diferença que, embora não suficiente para afirmar a superioridade de uma abordagem sobre a outra, levanta questões relevantes quanto à interpretação dos dados. Por outro lado, análises secundárias sugeriram que, entre os sobreviventes, a estratégia liberal poderia estar associada a melhores escores de funcionalidade e qualidade de vida, sem, contudo, impactar significativamente a mortalidade.
Essas nuances ressaltam que a decisão sobre qual limiar adotar não é trivial e deve considerar fatores individuais de cada paciente. O ensaio, além de evidenciar a segurança de ambas as abordagens, aponta para a possibilidade de que, em certos contextos – especialmente naqueles em que a preservação da função neurológica e a melhora da qualidade de vida são prioridades – uma estratégia mais liberal possa ser vantajosa. Por outro lado, o aumento no número de unidades transfundidas na estratégia liberal levanta questões sobre o balanceamento entre benefícios marginais e o risco potencial de complicações, mesmo que estas não tenham se manifestado de forma alarmante no estudo.
Outro ponto que merece atenção é a heterogeneidade intrínseca dos pacientes com TCE. As diferenças observadas em características basais entre os grupos, mesmo com o rigor do delineamento randomizado, reforçam a complexidade de se aplicar protocolos padronizados a uma população tão variada. Assim, o estudo reforça a necessidade de uma abordagem individualizada, onde a decisão de transfundir seja ponderada à luz do quadro clínico, das comorbidades e, sobretudo, dos objetivos terapêuticos para cada paciente. Essa personalização da prática clínica é, sem dúvida, um dos grandes desafios atuais na medicina intensiva e neurocrítica.
Em síntese, o HEMOTION contribui significativamente para o debate sobre os limiares de transfusão em pacientes com TCE, destacando que, embora uma estratégia liberal não tenha demonstrado superioridade clara na redução de desfechos neurológicos desfavoráveis, há indícios de melhorias em aspectos funcionais e de qualidade de vida entre os sobreviventes. Essa constatação convida os médicos a refletirem sobre os critérios que norteiam a decisão de transfusão, equilibrando o rigor das evidências científicas com a prática clínica cotidiana. Afinal, a aplicação dos achados deste estudo pode incentivar uma reavaliação dos protocolos atuais, promovendo discussões que envolvam tanto as vantagens quanto os potenciais riscos de cada abordagem. Em um cenário de incertezas e desafios constantes, a provocação para que se adote uma postura crítica e individualizada permanece como um dos maiores legados desta pesquisa, impulsionando a busca por estratégias que, além de seguras, sejam verdadeiramente eficazes na promoção da recuperação e na melhora da qualidade de vida dos pacientes.
Autor
Dr Fidel Meira – Neurologista
- CRM-MG 40.626 | RQE 26.249
- Especialista em neurologia pelo Hospital Madre Teresa, Dr. Fidel é presidente da Sociedade Mineira de Neurologia e entusiasta das inovações tecnológicas na saúde
Referência
Turgeon AF, Fergusson DA, Clayton L, Patton M-P, Neveu X, Walsh TS, et al. Liberal or Restrictive Transfusion Strategy in Patients with Traumatic Brain Injury. New England Journal of Medicine. 2024. DOI: 10.1056/NEJMoa2404360.